Em um país constitucionalmente democrático, o processo penal, sob a égide de um sistema acusatório, deve ser concretizado como filtro para o exercício do poder punitivo estatal.
Em outras palavras, malgrado o discurso oportunista e distorcido veiculado por programas policiais apelativos (e até por parte de algumas autoridades) de que o processo penal teria como objetivo contribuir para uma invencionada “impunidade” (discurso no mínimo curioso, já que o Brasil detém a terceira maior população carcerária do planeta, atrás apenas de EUA e China, rumo à liderança) a verdade é que o Processo Penal é uma GARANTIA a todo e qualquer cidadão contra os ABUSOS por parte do Estado no exercício do seu PODER DE PUNIR.
O Estado nunca precisou de processo para punir aqueles eleitos como os “malfeitores” da sociedade (na idade média, eram as “bruxas a serviço de Satã”, hoje, são os traficantes), basta refletir se as mulheres que foram queimadas nas fogueiras da “santa” inquisição tiveram a chance de recorrer e se os milhões de judeus que foram exterminados pelo Estado Nazista tiveram a oportunidade de responder à acusação, em estado de presunção de inocência.
Em que pese esse não seja o tema deste artigo, a introdução é necessária para que o leitor perceba o quanto esses discursos veiculados por programas transmitidos durante o almoço e o café da tarde corroboram com os abusos de poder por parte do Estado, mesmo que na forma o processo penal seja democrático e garantista.
Na prática, muitos policiais, promotores e juízes passam por cima do processo penal e condenam o acusado com base em uma dúvida razoável e manobras cognitivas (absurdas) na tentativa de “salvar” o processo.
Felizmente, os Tribunais Superiores tendem a consertar essas “lambanças” realizadas pelos Tribunais de Justiça. Enfim, passemos ao tema.
Associação para o Tráfico X Concurso de Pessoas no Tráfico de Drogas. Qual a diferença?
Nos termos do artigo 35 da Lei 11.343/06, haverá o crime de associação para o tráfico quando “Associarem-se duas ou mais pessoas para o fim de praticar, reiteradamente ou não, qualquer dos crimes previstos nos arts. 33, caput e § 1º, e 34 desta Lei”, sendo a pena de reclusão, e 3 (três) a 10 (dez) anos, e pagamento de 700 (setecentos) a 1.200 (mil e duzentos) dias-multa.
Da leitura do artigo 35, percebe-se que, sem a análise e interpretação necessária, facilmente se confunde a figura do tipo com o concurso eventual de pessoas previsto no artigo 29 do Código Penal.
E nem é preciso dizer que o Ministério Público (sabedor da máquina moedora de carne que é o processo penal concreto, da omissão de muitos juízes e do amparo por uma sociedade influenciada por um discurso vingativo, punitivista, ignorante e ignóbil por parte das grandes agências policiais e de grande parte da mídia) usa e “ab-usa” do dispositivo para transformar todo e qualquer concurso de pessoas em crime de associação para o tráfico.
Entretanto, o Superior Tribunal de Justiça vem fixando o entendimento de que para a caracterização do crime previsto no artigo 35 da Lei de Tóxicos, a acusação deverá demonstrar a presença da ESTABILIDADE e PERMANÊNCIA de se associarem duas ou mais pessoas, nos termos dos elementos constitutivos do tipo.
Em outras palavras, não basta dizer na denúncia que os acusados se associaram para o tráfico, imputando-os os crimes em concurso material; é preciso demonstrar que a associação não foi eventual e inconstante.
Vide precedente do Superior Tribunal de Justiça:
AGRAVO REGIMENTAL EM HABEAS CORPUS. CRIME DE ASSOCIAÇÃO PARA O TRÁFICO. ART. 35 DA LEI N. 11.343/2006. AUSÊNCIA DE PROVA DA CONCRETA ESTABILIDADE E PERMANÊNCIA NA ORIGEM. ABSOLVIÇÃO. JURISPRUDÊNCIA DO STJ. 1. Para a configuração do delito de associação para o tráfico "é imprescindível o dolo de se associar com estabilidade e permanência, uma vez que a reunião ocasional de duas ou mais pessoas não é suficiente para a configuração do tipo do art. 35 da Lei 11.343/2006". (AgRg no HC n. 573.479/SP, relator Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, julgado em 19/5/2020, DJe 27/5/2020.) 2. No caso, ao deixar de esclarecer o tempo da suposta associação e sem evidenciar a existência concreta de animus associativo, as instâncias ordinárias não declinaram fundamento válido para a conclusão de que houve vínculo duradouro entre o paciente e qualquer membro da facção, inexistindo prova da estabilidade e permanência para lastrear a condenação pelo delito de associação para o tráfico. 3. Não se faz possível a condenação pelo delito de associação para o tráfico em razão de a prisão ter sido realizada em local sabidamente dominado por facção criminosa. 4. Agravo regimental improvido. (STJ - AgRg no HC: 734103 RJ 2022/0099998-4, Relator: Ministro JESUÍNO RISSATO DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJDFT, Data de Julgamento: 13/03/2023, T6 - SEXTA TURMA, Data de Publicação: DJe 16/03/2023) (grifo nosso)
A nosso sentir, correto é o posicionamento pois do contrário, todo concurso de pessoas para o tráfico de drogas seria, automaticamente, associação para o tráfico.
Logicamente, considerando não haver responsabilização objetiva no Direito Penal, imperiosa a demonstração por parte da acusação quanto à presença dos requisitos.
Infelizmente ainda temos muito o que melhorar, pois na prática, muitas vezes o que se vê é justamente o contrário.
Bruno Ricci - OAB/SP 370.643
Contato: (11) 99416-0221

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