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A crise do Inquérito Policial Brasileiro


Diversos são os motivos que nos levam a crer que a investigação preliminar brasileira (em especial o inquérito) está em crise.

 

Os principais motivos dessa crise são o momento em que o inquérito policial foi pensado (enquanto instituto, visto que instituído a partir do Código de Processo Penal em vigência) em relação aos dias atuais; a função Direito Penal aos olhos do senso comum e a espetacularização das investigações nos casos de repercussão.

 

Aliás, falar em “espetacularização em casos de repercussão” é algo que vem perdendo sentido, na medida em que até o furto que ocorre na esquina da padaria de um município com 10 mil habitantes é explorado de forma sensacionalista e comercial por parte da imprensa.

 

  • Do contexto em que o inquérito policial foi pensado e da necessidade de uma releitura à luz da Constituição de 1.988

 

O modelo de inquérito policial atual foi instituído a partir do Código de Processo Penal de 1.941.

 

Da exposição de motivos do código, podemos ter a constatação de que sua base principiológica é autoritária, na medida em que há expressa previsão de necessário combate aos “favores” concedidos ao investigado (esses favores seriam os direitos fundamentais do cidadão) além da repressão preventiva com a prisão processual automática diante de uma prisão em flagrante.

 

Esse modelo de inquérito foi pensado em meados da década de 20 e 30 do século passado, tendo como base o Código de Processo Penal italiano do governo fascista de Benito Mussolini.

 

A partir daí já nos deparamos com os seguintes problemas: o código tem como fonte uma legislação fascista (que inclusive já foi revogada na Itália há muitos anos); há nítida coisificação do investigado, na medida em que relativizados direitos e garantias fundamentais e instituída a presunção de culpabilidade (prisão automática e ausência de direito ao contraditório e à ampla defesa durante as investigações).

 

“Coisificar” o investigado foi algo basilar para os regimes autoritários da Alemanha nazista e Itália fascista, razão pela qual o extermínio dos judeus e das minorias foi levado a efeito, na medida em que cancelados os seus direitos individuais e desconsiderados enquanto cidadãos.

 

Obviamente, esse modelo de inquérito não encontra respaldo à luz da atual constituição democrática, que consagrou como basilares os princípios do contraditório e ampla defesa aos litigantes em processos judiciais e administrativos e aos acusados em geral, além da presunção do estado de inocência.

 

Portanto, quando o inciso LV do artigo 5º da Constituição Federal expressamente prevê a necessidade de garantia do contraditório e da ampla defesa aos acusados em geral, não há nenhuma ressalva a respeito de não serem cabíveis tais institutos no inquérito policial que, nada mais é, do que um procedimento em que se constrói um pronunciamento estatal, qual seja, o relatório final por parte da autoridade policial.

 

Logo, as características do inquérito policial que nos ensinaram nos bancos de faculdade perderam total sentido, como o inquisitivo, sigilo e discricionariedade do delegado.

 

De uma leitura constitucional do inquérito, concluímos que a inquisitoriedade é incompatível com o sistema acusatório, e que o sigilo enquanto regra se levado ao pé da letra ofende o direito à publicidade e à ciência que todo e qualquer cidadão tem de saber a respeito de eventual investigação em andamento contra si.

 

Daí a razão pela qual a súmula vinculante 14 do STF mitigou esse sigilo, bem como o inciso XIV do artigo 7º do EAOAB, na medida em que garantem ao acusado e seu defensor o acesso integral aos atos já praticados no inquérito policial.

 

No tocante ao contraditório e amplitude de defesa, nos referimos em especial às provas cautelares, antecipadas e não repetíveis.

 

São exemplos de provas não repetíveis o exame do local dos fatos (laudo Perinecroscópico), o exame de corpo de delito em pessoas e objetos e o exame necroscópico.

 

Já as provas antecipadas são aquelas que podem se tornar inacessíveis pelo decurso natural do processo, como por exemplo uma testemunha em leito de morte.

 

As provas cautelares, por sua vez, são aquelas que podem desaparecer com o tempo, como por exemplo a interceptação telefônica.

 

Em todos esses casos (a exceção da oitiva da testemunha em estado terminal, pois a prova é realizada em audiência), diz-se que o contraditório é “diferido”, ou seja, adiado para o processo.

 

Em outras palavras, há o adiamento da possibilidade de o acusado se manifestar sobre essas provas.

 

No frigir dos ovos, o dito “contraditório diferido” é ilusório e não passa de uma forma de manter as coisas como elas sempre foram.

 

Ora, como poderia o acusado nomear um assistente técnico para periciar o local dos fatos anos após a prova ter sido produzida pelos peritos do Estado?

 

E como poderia ele realizar o exame necroscópico no cadáver da vítima para verificar se as manchas da pele seriam resultantes de disparos a curta ou a longa distância?

 

É impossível, razão pela qual o correto seria possibilitar à defesa a realização da prova concomitantemente ao Estado.

 

Em suma, a defesa/defensoria pública acompanharia a realização da prova pela polícia científica e em seguida colheria a sua prova.

 

Pode parecer estranho imaginar esse cenário, mas o fato é que malgrado devesse haver imparcialidade durante o inquérito policial por parte da polícia judiciária, peritos do Estado e polícia científica, de fato não há.

 

Ninguém investiga um cidadão para confirmar a presunção do seu estado de inocência.

 

  • Da verdadeira função do inquérito; de sua função aos olhos do senso comum e a espetacularização pela mídia.

 

Tecnicamente, a verdadeira função do inquérito policial é básica e simples: reunir indícios de autoria e materialidade para o início de um processo penal.

 

Na prática, o que se vê é um Estado usando o inquérito como forma de dar “satisfação” às massas, insufladas pela (in)formação promovida por parte da imprensa.

 

Todos temos o direito à informação e a imprensa tem o direito e dever de informar.

 

Liberdade de imprensa não se confunde com libertinagem de imprensa.

 

Na teoria, a imprensa deveria simplesmente promover a informação à sociedade sobre os fatos relevantes à comunidade, de forma imparcial e limpa.

 

Não deveria haver o pinçamento de determinados fatos para promover a formação (e não informação) de um pensamento ideológico às massas.

 

Você já teve a impressão de que a imprensa só publica “desgraça”? Pois é.

 

Aí chegamos ao ponto crucial e nevrálgico da questão Direito Penal X Imprensa.

 

O crime gera engajamento e dá muito dinheiro a quem publica.

 

Na prática, boa parte da imprensa forma a opinião das massas a partir da manipulação de fatos e informações cuja fonte por vezes é “sigilosa”.

 

A partir daí, o inquérito policial, que é o primeiro provimento estatal após a ocorrência de um crime, passa a ter como função a condenação pública de quem em tese está sendo apenas investigado.

 

Comuns são as entrevistas de delegados “mostrando serviço” à sociedade, dizendo a respeito de estarem “punindo com rigor” e de terem “praticamente solucionado o caso”.

 

Vou dar um exemplo prático e recente: Caso Deolane e Gusttavo Lima.

 

Quando a operação estourou, liberdades foram cerceadas e patrimônios foram confiscados.

 

O delegado veio a público e disse tudo o que as massas gostariam de ouvir.

 

Uma juíza proferiu uma decisão absurdamente teratológica de manutenção de prisão, contrariando, inclusive, um parecer do Ministério Público, legítimo promotor da ação penal.

 

Ambos, juíza e delegado, ficaram famosos.

 

Meses depois o inquérito foi arquivado, pois não havia sequer indícios de autoria e prática de crime.

 

Pergunto: alguém viu delegado e juíza virem a público se explicar e justificar tudo o que fizeram?

 

Claro que não.

 

Eis a grande questão envolvendo a espetacularização da coisa penal pela mídia.

 

Virou negócio.

 

Todos nós, enquanto sociedade, temos culpa nesse processo.

 

O direito penal deveria ser a medida excepcional para a solução dos conflitos, mas a atuação de parte da imprensa e o “clamor” das multidões acabam transformando essa via (ultima ratio) em principal arma para a solução dos litígios.

 

Quem atua na área criminal sabe que casos como Deolane e Gusttavo Lima acontecem todos os dias nas periferias, e pessoas que haviam sido condenadas pela opinião pública não acabam sendo sequer processadas.

 

Há algum pedido de desculpas no dia seguinte? Há alguma retratação pelas emissoras? Não.

 

E ai de quem ouse questionar! “Estão querendo censurar a imprensa” eles dizem.

 

A maior arma na atualidade não é bélica, é o microfone.

 

Liberdade de imprensa é uma coisa, libertinagem é outra.

 

Todos temos o direito à informação, e não a sermos formados e rebanhados pela imprensa.

 

Apenas reproduzimos a opinião do apresentador do balanço geral, fantástico e afins...não temos nossa opinião pois não queremos estudar nem pensar!

 

Todo esse contexto nos leva à deturpação da função do inquérito policial.

 

Na teoria, o inquérito policial deveria reunir elementos mínimos para o oferecimento da denúncia pelo Ministério Público.

 

Na prática, pune-se para ver se é o caso de punir.

 

E não raras vezes, não é caso.

 

É preciso haver uma mudança de mentalidade por parte das polícias e Poder Judiciário (principalmente) no sentido de aceitarmos a Constituição como uma proposta e um modelo de sociedade a construir.

 

Enquanto o Poder Judiciário tratar a sociedade como um pai e uma mãe tratam uma criança mimada, os resultados serão catastróficos.

 

Assim como uma criança mimada não sabe o que quer e nem tem conhecimento e maturidade para resolver determinados problemas, o mesmo acontece com a sociedade em relação à criminalidade.

 

E tal qual os pais serão os culpados pelo insucesso na formação de uma pessoa mimada, despreparada para a vida, assim será o Estado ao se recusar em desenvolver a proposta de sociedade nos termos da Constituição Democrática.

 

Quanto mais presos provisórios, maior a criminalidade e a crise no inquérito e no processo.

 

Ao final, a mesma sociedade mimada pelo Estado será aquela a lhe culpar pelo aumento da criminalidade, tal qual um filho culpa seu pai e sua mãe por nunca ter sido amado quando, na verdade, o problema foi o “excesso de amor”.

 

Quanto mais prisão, mais violência.

 

Quanto mais violência, mais pedido de prisão e de mais prisão.

 

Enfim, é preciso uma mudança de mentalidade, pois não há lei que melhore o estado de espírito de uma sociedade.

 

Bruno Ricci - OAB/SP 370.643

Contato: (11) 99416-0221






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